90. A Viagem da Mátria

Mit Maikon, gaulês, arqueiro de Joy Divile.

[Antes: 89. Porrada em Fetifaustus]

Durante a primeira madrugada como clandestinos, Mit Maikon e Lager Bier ficaram escondidos atrás das jaulas dos animais no porão do navio que levava a Rainha para o Hazian, eventualmente tendo que se entocar mais ao fundo do recinto, sempre que algum marujo descia até lá. 

– Vamos sair daqui desse porão, Mit. – Sugere Lager: – Se alguém perceber a gente, eu lanço uma bruma de fuga.

– Também quero vazar daqui, mas fugir pra onde, cara? Estamos num navio. – Rebate Mit.

– Então acho melhor a gente se empoleirar no madeiramento desse porão. – Diz Lager: – Aqui onde estamos vai descer gente toda hora pra pegar comida.

– Isso. Vamos ficar nas madeiras. – Concorda o arqueiro.

O madeirame do porão era habitado por Percevejos Garra, do tamanho de um rato, e por Ratazanas Cascudas, do tamanho de um gato. O cheiro por ali era realmente insuportável, misturando comida podre, resto de percevejos, tripas de animais e merda de rato.

Viajar ali seria desgastante. Mas era o melhor esconderijo que tinham no momento.

***

Krul Petersen retornou da missão em Eredra sem alcançar seu objetivo, mas trouxe informações importantes: a Rainha Anni tinha sido embarcada em um galeão com destino ao longínquo continente de origem dos alamanos, o Hazian. A viagem levaria semanas até chegar ao destino, carregando dois clandestinos: o mago Lager Bier e o arqueiro Mit Maikon, dois integrantes da cavalaria velga de Joy Divile. Do grupo que acompanhou Krul na missão, a bruxa Liv Aussflag e o cavaleiro Henzo Hagen tinham sucumbido, e o mago Vanther Hal tinha voltado muito ferido.

Irritado com o fracasso no resgate, Krul estava decidido a conseguir uma equipe para navegar rumo ao desconhecido, seguindo a pista de Anni. Para muitos, aquilo era loucura, mas o Gargo Gigantrix do clã Petersen já contava com um velho amigo, Ben Hodrazar, um navegador de Fleissig, famoso por conseguir velocidades impressionantes em sua pequena caravela, a Mátria. Liderando uma pequena tripulação de vinte homens, Ben tinha se oferecido para a missão, após um pedido do próprio general da Dokhe, Kadwan den Darklands. No fundo, o Duque jamais tinha esquecido de sua paixão da juventude, e queria ver Anni ser coroada como Rainha de Viktoria no lugar de seu terrível filho.

Reunindo uma nova equipe, Krul segue uma longa e perigosa viagem na famosa caravela de Ben Hodrazar. Além de uma tripulação de dezesseis marinheiros da Poster, a força naval de Fleissig, o Gargo-Gigantrix vulkânico também contava com o auxílio de um mago necromante, o velga Melvis Merlin, e dois guerreiros vilandos de Joy Divile, Putauns e Tokotus, este último um anão arqueiro. Menos de um dia após o retorno de Krul, a Mátria já estava partindo de Fleissig, tentando seguir o rastro do galeão alamano.

No início da tarde, a caravela de Hodrazar partia em direção ao Mar de Geran, mas logo avistaram uma enorme esquadra de galeões alamanos. Eram dez navios, com pelo menos duzentos bárbaros a bordo em cada um deles. Com muita habilidade de navegação, o oficial almirante faz uma manobra arrojada que levou a caravela para trás de um pontal no litoral leste da Ilha da Gerânia, saindo da vista dos inimigos.

Apreensivos, Krul percebe que os galeões estavam rumando para a vila de Sunnig. Seja qual fosse o plano de Ighan, aqueles reforços não poderiam significar boa coisa para os planos dos velgas. Após algumas horas de espera, Ben zarpa novamente, e no início da noite a Mátria já tinha contornado o Pontal de Eredra e navegava em mar aberto, numa velocidade realmente impressionante.

Usando seus poderes elementais com objetos pessoais trazidos por Krul de Joy Divile, Ben já tentava rastrear o caminho do galeão onde Mit e Lager tinham se escondido. Além de ótimo navegador, Hodrazar também era um bruxo experiente, conhecedor dos espíritos que habitavam os oceanos. No início da madrugada, com a ajuda de algumas entidades elementais, o capitão já conhecia a trilha do navio alamano, que encontrava-se naquele momento a menos de um dia de viagem da Mátria.

***

Depois de suportar quase um dia inteiro empoleirado na estrutura do casco, Lager Bier já sentia os efeitos adversos da Poeira Cristal que tinha consumido antes. Esforçando-se para permanecer acordado à noite, o necromante acaba sendo picado por um percevejo no exato momento em que o mesmo sujeito gordo que tinham visto antes entrava no porão.

– Hey motherfucker! – Grita o alamano, vendo Lager escondido por entre as madeiras.

Lager sai do escuro e desce dali com as mãos levantadas, se rendendo:

– Calma amigo, não quero problemas…

– I don’t speak your fucking language, veggie! – Grita o careca, estranhando ver um velga como clandestino no porão do navio. No Hazian, só existiam velgas escravos.

O necromante para de andar, e Mit continua observando a cena, apreensivo.

– Taken off your clothes, velgian faggot! – Grita o alamano, antes de chamar alguns companheiros: – Bob! Mike! Clandestine here!

Ainda que não falasse o Hoglish, o necromante sabia exatamente o que o alamano estava querendo, e não tinha a menor vontade de aceitar aquilo. No alto do madeirame, Mit já fazia mira. Quando Bob e Mike descem para o porão, o arqueiro lança uma flecha que pega em cheio na testa do gordo alamano, que tomba ao chão, morto. Lager aproveita para soltar uma bruma de sono e Bob não resiste, caindo apagado. Mit já estava acionando o arco para disparar mais uma flecha, quando Mike deu o alerta, gritando:

– Hey Guys! Fucking veggies here!

A flecha atinge o coração do alamano, que também cai morto junto aos corpos de seus dois companheiros. Do porão inferior, já era possível ouvir a movimentação acima. Devido ao alerta, vários marujos estavam descendo.

– Vai vir uma galera, Lager! – Exclama Mit: – Temos de nos entregar!

– Prefiro morrer. – Devolve o necromante: – Ou então pular no mar.

– Pular no mar é suicídio. – Rebate o arqueiro: – Vamos nos esconder, e quando entrarem aqui a gente lança uma bruma e tenta subir.

Rapidamente, os dois correm para o fundo do porão, perto da popa, e entram em barris de água. Logo depois, mais três marujos descem ao porão inferior:

– Mike and Pete are dead! – Exclama um dos alamanos: – Bastards on board!

Entocados atrás de uma pilha de tonéis, Mit e Lager escutavam vários passos descendo as escadas, e uma gritaria no porão. Pelo menos dez marujos estavam por lá agora. Prestando atenção no barulho, podiam perceber que os alamanos estavam abrindo cada um dos barris para investigar. No desespero, Lager resolver sair do esconderijo e vira um dos tonéis de rum, acionando uma bruma de brilho para colocar fogo no local.

Fogo. O necromante tinha incendiado um barril no porão do navio.

Com o balanço do casco, o rum se espalha pelo fundo do porão, levando as chamas para todo o lugar. Com as labaredas, os animais enjaulados começam a gritar, assim como os alamanos que investigavam a área, que gritam alarmados:

– Fire!

Devido ao líquido inflamável, as chamas tomam conta rapidamente do local. Mit também sai do barril, e Lager lança outra bruma de brilho, ainda mais forte, para impedir a visão de quem ainda estava por ali. O necromante então corre em direção à escada, gritando:

– Fire! Fire! Enemies down!

A fumaça preta começava a subir, o que significava que as chamas tinham começado a lamber a madeira e o enceramento do casco. Aquilo era um péssimo sinal. Não ia demorar muito até que tudo aquilo começasse a desmoronar. O enorme galeão estava condenado a afundar.

Quando Lager e Mit sobem a escada, percebem que a gritaria e o desespero tinha tomado conta do convés. Já não havia mais ninguém no porão superior, onde estavam. Apenas muita fumaça e um calor que já começava a ficar insuportável.

– Caralho, Lager! Se o barco afundar, vamos matar a Rainha! – Grita Mit.

– Farinha pouca meu pirão primeiro! – Responde o necromante.

O porão inferior já tinha virado uma imensa fogueira. Os animais enjaulados tinham parado de gritar, carbonizados. Pela escada, ratazanas e percevejos abandonavam o local, desesperados. Já com dificuldade para respirar ali, Lager e Mit sobem para o convés, onde testemunham um verdadeiro pandemônio: no meio da fumaça, muita gritaria e confusão, e já havia disputa por lugares nos botes que estavam sendo lançados ao mar. Quando o necromante solta outra bruma de brilho, confundindo ainda mais os marujos, o caos se instala completamente. Apesar da situação crítica, Lager Bier não parava de rir.

 – Temos que achar a Rainha! – Grita Mit, sem acreditar na reação do companheiro.

– Vamos é pular no mar pra nos salvar, cara! – Rebateu Lager.

– Não! Tenta uma necromancia em algum dos mortos!

As madeiras do galeão começavam a estalar, e as labaredas vindas do porão, tomado pela água, já estavam lambendo o convés. A ruína daquela estrutura era iminente. Com todo o calor e a fumaça negra tomando conta do local, já estava difícil respirar ali. A briga para entrar nos botes, abarrotados de gente, era de vida ou morte. Agora era cada um por si, e Hagalaz contra todos.

***

Devido ao grande balanço da Mátria, que quase voava por sobre as ondas, alguns tripulantes da caravela tiveram problemas durante a viagem. O mago Melvis Merlin sofria muito com os enjoos, vomitando sem parar. Tokotus e Krul também sentiram a maresia, mas Putauns conseguiu resistir bem, assim como o resto dos marujos, já acostumados com o estilo arrojado de Ben Hodrazar.

A jornada seguia de vento em popa quando uma imagem surpreendente surgiu à frente da embarcação: o galeão alamano estava em chamas! Nas últimas horas daquela madrugada, o imenso navio não passava agora de uma bola de fogo no meio do oceano.

***

Enquanto isso, no galeão em chamas, Lager Bier se arrastava na direção de um dos corpos caídos no convés, atendendo ao pedido de Mit. O mago então mastiga uma raiz de Cidália e começa a fazer o ritual necromante. Mas um ruído alto interrompe sua concentração: era o mastro principal que rachava, desabando sobre o convés. Poucos segundos depois, um tremor tomava conta da embarcação, que começou a embicar. O casco tinha começado a rachar ao meio. Os poucos que ainda estavam no convés se lançaram ao mar. Mit se joga ao lado do amigo, e crava um punhal furando a roupa do defunto na madeira do convés, evitando que eles deslizassem:

– Continua esse ritual aí, porra!

Com muita dificuldade, Lager consegue ter alguns flashes da memória do morto. A Rainha estava trancada num cubículo do camarote superior, no castelo de popa, que àquela altura já estava bem no alto, pois o chão do convés se inclinava a 45 graus. Enquanto as chamas já consumiam totalmente as velas, o galeão afundava rapidamente. Quando o casco afinal se rompesse, tudo iria parar no fundo do mar.

Com agilidade, Mit arranca o punhal e começa a escalar na direção do camarote. Lager se agarra numa corda do velame para não cair junto com o cadáver, que foi engolido pela água. Quando o gaulês finalmente alcançou o castelo da popa, percebeu que a porta estava trancada. Do lado de dentro, a Rainha gritava desesperada por ajuda.

Usando o arco como alavanca, Mit arrebentou a tranca, no exato momento em que o casco estalava de forma sinistra:

“Crack!”

A Rainha Anni caiu em cima de Mit Maikon quando tudo começou a despencar para o mar. O arqueiro tenta agarrá-la, mas não consegue. Para sobreviver ao afundamento, Lager Bier resolve aspirar as suas duas últimas cargas de Poeira Cristal. Desmembrado em duas partes, o galeão vai a pique, afundando com muita rapidez. Já no fundo do mar, Anni perde a consciência, e Mit nada para resgatá-la.

Após sobreviver ao empuxo, Lager busca uma das ripas da embarcação para se agarrar. O necromante estava salvo, pelo menos por enquanto. Ao longe, ele podia avistar os botes dos alamanos se afastando da área de naufrágio. Enquanto isso, Mit mergulhava ainda mais fundo para tentar salvar a rainha, que continuava afundando. Sentindo o ar já se esgotando em seus pulmões, o gaulês finalmente consegue agarra a mão de Anni, e arrasta a rainha para a superfície, onde recebe a ajuda de Lager para colocá-la em cima de uma prancha de madeira improvisada.

Mit tenta fazer uma respiração boca a boca. A Rainha já tinha 44 anos, mas ainda era uma mulher linda. Após algumas tentativas, Anni finalmente recobra a consciência, vomitando toda a água salgada que tinha engolido.

– Eu sabia que a bebida um dia iria me salvar… – Faz piada Lager, depois de todo aquele perrengue.

Quando os primeiros raios de sol da manhã iluminaram o oceano, Mit e Lager finalmente se deram conta de que poderiam colocar mais uma proeza em seus breves currículos. Eles tinham salvado a Rainha de Viktoria.

***

Quando avistou o naufrágio, Hodrazar tentou contactar os animais aquáticos do local, que lhe passaram a informação de que vários botes já haviam deixado o galeão. E uma agradável surpresa: A Rainha Anni estava viva, agarrada aos destroços junto com Mit Maikon e Lager Bier, que tinham conseguido resgatá-la!

Aumentando a velocidade da embarcação, Hodrazar passou pelos botes inimigos apinhados de gente, seguindo o rastro de golfinhos que o levaram diretamente aos náufragos. Quando viram a caravela com a bandeira de Van Hal, Mit, Lager e Anni não podiam acreditar naquela intervenção de Hagalaz! Estavam salvos!

Pelo menos era o que pensavam naquele momento, quando subiram ao convés da Mátria. Mas o deus do Destino sempre dava com uma mão e retirava com a outra.

Toda aquela bagunça tinha chamado a atenção de uma outra criatura. Uma criatura poderosa, que se considerava a dona dos Mares do Norte: Górgon.

– Caralho! – Exclamou Putauns.

Todos ali conheciam bem aquele vulto enorme voando no horizonte, crescendo rapidamente com o seu bater de asas gigantescas. O Dragão de Fogo do Norte era o mais inteligente de todos, e não costumava tolerar aquele tipo de confusão em seu território.

Nos botes do galeão, alguns náufragos alamanos já mergulhavam para o mar, sabendo que o dragão varreria todo mundo. Na Mátria, Ben Hodrazar olhava para sua caravela com ternura, parecendo antecipar a desgraça que estava prestes a ocorrer. Um silêncio sepulcral começava a tomar conta dos ambientes, como se todos por ali já encarassem a própria morte iminente como uma certeza.

– Acho que temos uma chance. Vamos descer o bote emborcado, e nos escondemos embaixo. Merlin faz uma bruma de camuflagem e todos cruzam os dedos… – Sugere Krul.

– Pode funcionar. – Diz Merlin.

– Mas alguém teria de conduzir a caravela pra longe. – Avisa Krul.

– Eu levo. – Aceita Hodrazar, sabendo que aquilo era uma sentença de morte.

Todos saltam ao mar e se escondem embaixo do bote, enquanto Ben Hodrazar navega a toda velocidade para longe dali, atraindo a atenção do dragão para oeste.

De muito longe, todos puderam ver quando Górgon incinerou a Mátria e todos os botes alamanos que estavam perto. Vários pontos de incêndio podiam ser vistos no Mar Exterior, a dezenas de milhas da costa. O dragão sobrevoa a área por minutos, atacando alguns dos marujos que estavam boiando por ali. Após um tempo, Górgon se dá por satisfeito e retorna, tomando a direção sudoeste. Por muito pouco, tinham escapado da morte certa.

Eram mais de vinte pessoas num bote feito para apenas oito. Entre elas, o Gargo-Gigantrix Krul Petersen, os guerreiros vilandos Putauns e Tokotus, o mago Melvis Merlin, 16 marinheiros da tripulação da Mátria, Lager Bier, Mit Maikon e a Rainha Anni De Gris.

Aquela seria uma longa viagem de volta para Asgaehart.

[Continua: 91. O Cantão de Divile]

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