92. A Ilha do Templo
[Antes: 91. O Cantão de Divile]
Em algum lugar do oceano, o bote com a tripulação da Mátria navega à deriva em alto mar. Nenhum sinal de terra à vista. Após incinerar os restos do galeão alamano, os botes com os bárbaros sobreviventes do desastre e a caravela de Ben Hodrazar, o gigantesco dragão de fogo partiu de volta na direção sudoeste, rumo à Ilha da Morte, onde se instalou nas ruínas do antigo palácio real de Nibel. Quase por milagre, aquele que sempre foi considerado como o dragão mais inteligente de Asgaehart tinha deixado passar o pequeno bote com os sobreviventes da Mátria, emborcado na água e camuflado por uma bruma marítima.
Após um bom tempo de espera na água fria, para garantir que Górgon estivesse longe, e já preocupados com os agressivos tubarões vermelhos que começavam a rondar o local, os vinte sobreviventes tinham conseguido desvirar o bote e sair da água. O Gargo-Gigantrix Krul Petersen estava na liderança da missão, que tinha resgatado a rainha Anni dos destroços do galeão alamano, incendiado pelo mago bêbado Lager Bier. Seu companheiro de Joy Divile, o arqueiro Mit Maikon, tinha sido o principal responsável por salvar a rainha do afogamento, mas sabia que ninguém acreditaria em um pé rapado como ele, não fosse o testemunho da própria Anni. A situação era precária: a pequena embarcação, feita para no máximo oito pessoas, sofria com o excesso de peso. O pouco espaço já causava desconforto e cansaço, além da pouca água potável disponível em cantis e da comida que, racionada, duraria apenas uns três dias. Aliás, a situação não era precária, era desesperadora.
Para piorar a situação, as ondas oceânicas começavam a ganhar tamanho e uma tempestade horrível se anunciava no horizonte, com nuvens carregadas e centenas de raios ameaçadores cintilando no horizonte. A madrugada, muito bem iluminada pelas três luas de Asgaehart, Sela (a lua amarela), Luna (a lua azul) e Heva (a lua vermelha), quase alinhadas no orbe, prometia um perrengue arrumado para os sobreviventes.
Embora o capitão Hodrazar tivesse virado pó com a Matria, alguns marujos podiam afirmar que o bote deveria estar a pelo menos a 500 léguas do litoral de Asgaehart, o que daria uns dois dias de viagem de vento em popa, se estivessem na Matria. Mas as correntes oceânicas por ali empurravam o bote na direção oeste, rumo à costa de Hogan. Entre se preparar para a tempestade, arranjar água e comida, decidir que rumo tomar e evitar os tubarões famintos, tudo parecia prioridade. Mas aquele grupo sabia que o tempo era curto. Num piscar de olhos, todos ali poderiam estar mortos.
– Temos que dar um jeito de recolher água da chuva. – Sugeriu Lager: – Temos água para um dia apenas.
– Dois dias sem água vai morrer geral… – Disse Putauns: – Deu ruim.
– Aí, na boa… Essa vai ser pica. Não vejo muito o que fazer. – Lamenta Mit, começando a rezar para Hoguz: – …E assim te conclamo, oh Hoguz, Deus das Profundezas. Que nos ilumine com sua sabedoria e que seja feita a sua vontade! Amém!
Após algumas horas de sol, vários marujos começaram a se desesperar. Um deles, Jon Uilson, pulou na água e foi nadando a esmo até ser devorado pelos tubarões. Alguns olhares gulosos já eram lançados sobre a Rainha Anni, a única mulher do grupo. O tempo escureceu, e ondas altas balançavam o bote pra cima e pra baixo, piorando ainda mais o ambiente. Sentindo o clima ruim, Tokotus já mantinha uma flecha engatilhada.
– Se é pra morrer aqui, antes vou comer essa coroa… – Murmurou Sansu, um dos marujos.
– Acho que teremos de seguir a tradição de Cibel: o mais fodido se sacrifica pra salvar o resto, oferecendo sangue para beber e carne para comer… – Lembrou Rudiger.
Sansu agarra a Rainha e a derruba, provovando a maior confusão no bote. Bronkus Segundus, outro marujo, tenta defender Anni, e entra em luta contra o colega.
– Para com essa porra, cara! – Grita Vermoilen, imediato do falecido Hodrazar.
Krul Petersen faz um sinal e Tokotus acerta uma flecha nas costas de Sansu. Bronkus degola o sujeito, que cai morto. Melvis Merlin aproveita a confusão para lançar uma bruma de sono que bota metade da tripulação para dormir, incluindo a rainha. Lager Bier se adianta e começa a matar e picar a carne dos marujos apagados, de forma a resolver o problema de superlotação e guardar alguma carne para depois. Quando a chuva começou a cair grossa no bote, no fim da tarde, o cenário era de horror. Depois daquela limpa, restavam apenas doze sobreviventes no bote, e uma pilha de sete cadáveres.
– Tem marujo traidor no meio de nós ainda… – Sussurrou Lager para Krul, se referindo a Bronkus, Vermoilen, Rudiger e Livius, os únicos tripulantes da Mátria que ainda estavam vivos.
O vento soprava com força e o pequeno bote já oscilava violentamente sobre as ondas, obrigando que todos os sobreviventes se agarrassem firme na embarcação. Com a força das águas, os cadáveres já tinham sido todos lançados ao mar, sendo rapidamente comidos pelos tubarões. Livius e Rudiger também acabam caindo do bote e encontram o mesmo destino horrível. Merlin, Mit, Bronkus e Tokotus começam a discutir se vale a pena se amarrar às cordas do bote, mas Krul alerta:
– E se o bote afundar? Vai todo mundo junto em procissão pra Hoguz? Eu não vou me amarrar a um pedaço de madeira pesado que pode ser arrastado para o fundo do mar, e acho que vocês também não deveriam fazer isso…
– Se o bote afundar vai morrer todo mundo do mesmo jeito. – Rebate Bronkus.
– Se eu não achar algo pra me agarrar, você está certo. Vai lá, companheiro. Quero ver você se desamarrar desacordado. – Responde Krul: – Mas seria bom mesmo se algum de nós ficasse conectado ao barco, para tentar achá-lo após a tempestade. Não vai ser eu.
– De certo modo estamos aqui por minha causa e do Lager. Eu fico amarrado então. Quero ver o que Hoguz reservou pra mim. – Diz Mit.
– Boa, garoto! Mit, o mito!
– Eu também ficarei amarrado. Sou o marinheiro. – Afirma Bronkus.
Tokotus e Putauns resolvem se amarrar junto a Mit e Bronkus, com os remos. O resto se agarra no bote para enfrentar a tempestade, que parecia aumentar de intensidade a cada hora. Enlouquecido em meio aos raios e trovões, Krul Petersen segurava a Rainha Anni, que tinha acabado de acordar, e parecia desafiar Hagalaz, gritando contra a tempestade:
– Hagalaz! Isso é o melhor que você fazer?! Hahahaha! Eu não vou morrer aqui! Está me escutando?! Não vou morrer aqui, porra!
– Aí, seu Krul… Essa viadagem aí não costuma dar futuro não, hein? – Avisou Bronkus.
E o futuro parecia cada vez pior. Num solavanco forte das ondas, já à noite, o bote vira. Todos são arremessados para fora da embarcação, e quem estava amarrado começa a ser puxado para o fundo. Vermoilen e Lager Bier não conseguem nadar no meio da turbulência e morrem afogados. Tokotus, Mit e Putauns conseguem chegar à superfície para respirar, mas Bronkus tem dificuldades. O gaulês e o gigante vilando tentam ajudar o marinheiro, mas Putauns acaba se afogando. Mit mergulha fundo e consegue desamarrar Bronkus, que já estava desacordado, salvando-o da morte.
O arqueiro sobe com o marinheiro à superfície e tem a ajuda de Tokotus, que também tinha se desamarrado, para mantê-lo flutuando. Enquanto isso, volta a ser arrastado pela corda do bote, que ainda estava submerso. Com muito esforço, Mit puxa a corda e acompanha o trajeto da embarcação, subindo à superfície para respirar de vez em quando. O gaulês luta com todas as suas forças para que o bote não afunde, até conseguir fazer com que o pequeno barco volte à tona, no fim da madrugada, quando a tempestade já tinha passado.
Nos primeiros raios de sol, Mit resgata os sobreviventes de mais um naufrágio. Krul tinha conseguido manter a rainha a salvo, mas Lager Bier e Vermoilen tinham desaparecido. O cadáver de Putauns tinha ficado preso ao bote, e foi içado para servir de ração emergencial. Além do gaulês, do oficial e da Rainha, Tokotus, Merlin e Bronkus também tinham sobrevivido. Agora eram apenas seis pessoas no bote. Com o passar das horas, o calor aumentava e tornava a situação impraticável. Agora estavam sem água, sem comida, e os tubarões já rondavam o pequeno barco.
Quando naufragou, o galeão alamano estava seguindo para noroeste, tentando escapar de uma corrente marítima que arrastava tudo para o sudoeste, onde estavam agora. Naquelas condições, tentar continuar rumando para o desconhecido Hazian era loucura. Bronkus calculou que, para voltar a Asgaehart, a melhor opção era seguir a corrente, tentando posteriormente uma guinada para o sul, de forma a alcançar a costa rubra ou dos reinos alamanos. Sem opções, começaram a drenar o sangue de Putauns para beber, e secar nacos de sua carne ao sol como refeição. Era algo horrível, mas a outra opção era a morte.
Alucinando com a insolação, Merlin tem certeza de ter avistado uma nau repleta de amazonas citroyanas, lindas. Temendo que elas não avistassem o bote, o mago necromante começa a gritar:
– Ei! Vocês! Aqui! Estamos aqui!
A maioria dos náufragos percebeu a ilusão, mas Bronkus também caiu vítima da miragem:
– Vou cair no meio dessas gostosas!
Merlin chega a se levantar para acenar, e logo depois parece feliz por ter sido avistado. Provavelmente, o sangue de Putauns, contaminado com Poeira Cristal, tinha batido mal para os dois. Como um louco, o necromante faz mímicas, como se estivesse sendo resgatado para um convés imaginário, beijando um remo. Krul Petersen apenas se lamentava, e a Rainha Anni parecia chocada com aquela demonstração de delírio, que só terminou quando o sol se pôs.
Quando acordaram, já à noite, Merlin e Bronkus voltaram à dura realidade do bote à deriva em alto-mar, bebendo o sangue e comendo os restos salgados de um cadáver. Krul, Tokotus e Mit remavam a favor da corrente. No dia seguinte, mais pessoas ficaram doentes. Merlin e a Rainha estavam nas piores condições. Bronkus e Tokotus também passaram mal, mas continuavam remando. Apenas Krul e Mit continuavam inteiros. Mas Hoguz enfim tinha lhes enviado um sinal: um bando de Condores Peregrinos, aves que faziam ninhos em pedras, seguia para oeste.
– Temos de segui-los! – Gritou Krul: – Partiu!
O grupo resolve então se desviar um pouco da rota, para seguir as aves de rapina. Remando a oeste para fora da corrente, durante todo o dia, os náufragos logo avistam, ao longe, uma ilha minúscula perdida no meio do oceano. Era rochosa, sem praias.
– Estamos salvos! – Exclama Krul.
– Graças a Hoguz! Se não formos pra lá, hoje vai morrer pelo menos dois aqui… – Concorda Bronkus.
Mais perto, podiam perceber que o local tinha sofrido a intervenção de alguma civilização. Havia uma espécie de muralha no litoral, com um templo ou fortaleza. E uma estátua na água, numa ilhota de pedra.
Os pássaros pousavam no alto de uma rocha na ilha. No início da noite, o grupo chega com o bote em frente ao pequeno ilhéu, com pouco mais de dois metros de raio. Olhando de perto, a estátua de pedra com cerca de três metros de altura, erguida sobre uma espécie de capela, claramente representava Hoguz. O deus das Profundezas olhava para o templo na ilha maior, e carregava um cetro em formato de tridente, com um cristal verde encravado.
– Deixa eu ir na frente. – Disse Krul.
Bronkus segue o oficial logo atrás, e Tokotus também os acompanha, de arco em punho.
Com cuidado, o oficial da Dokhe desce do bote. Quando Krul pisa na pedra do pequeno ilhéu, o cristal verde começa a brilhar, emitindo um zumbido que parecia aumentar de intensidade a cada segundo.