94. O Arauto de Hoguz
[Antes: 93. A Invasão de Yaztrik]
– Ativou. – Afirma Bronkus.
– Será que isso vai nos curar? – Disse Tokotus.
Krul estava preocupado, e com razão. Aquela pequena ilhota parecia uma tumba a céu aberto. Ao redor da capela, haviam várias gavetas de pedra com inscrições em uma linguagem que eles desconheciam. Tudo indicava que eram os nomes das pessoas que tinham sido enterradas ali. O brilho do cristal aumentava junto com o zumbido. Aquilo era claramente um templo, e eles poderiam não ser bem-vindos.
De fato não eram. Quando o ruído aumentou de forma incômoda, o chão de pedra emitiu um pulso de energia magnética que arremessou a todos. Mit, Anni e Merlin, que ainda estavam no bote, apenas são jogados na água, perto dali. Mas Krul, Bronkus e Tokotus, que estavam pisando na pedra, são empurrados para o alto e para longe. Krul dá sorte e cai na água, mas Bronkus e Tokotus se explodem contra as pedras da ilha maior, morrendo instantaneamente.
Krul nada de volta para o bote, e junto com Mit eles ajudam Merlin e Anni a subirem de volta na pequena embarcação. Na pequena ilha, o cristal verde tinha parado de brilhar.
– Isso aqui é um lugar sagrado. Profanamos. – Diz Krul: – Vamos tentar a outra.
Olhando para a ilha maior, chamava a atenção as muralhas de pedra e os enormes ciprestes. Tudo parecia desabitado e abandonado há tempos. Krul e Mit remam até uma espécie de ancoradouro, que ficava próximo a uma torre no canto leste. Mesmo com a saúde prejudicada, a Rainha Anni De Gris, que chegou a ter algum treinamento com as sacerdotisas em Viktoria, podia sentir a energia etérea do deus das Profundezas emanando da área:
– Hoguz está presente aqui… Tomem cuidado.
Mit continuava rezando, olhando para a estátua do deus, e Krul mais uma vez é o primeiro a saltar do bote para a terra firme. Dessa vez, o oficial da Dokhe pede para ir sozinho. Quando desembarca e começa a caminhar para o interior da ilha, o Gargo-Gigantrix percebe que, logo à frente, o bosque de ciprestes tem uma clareira, onde algum tipo de fera agressiva estava rosnando. Mais à direita, ficava uma fortaleza pequena de torreão, que parecia abandonada.
Com os ouvidos atentos para o rosnado, Krul segue para a construção em ruínas, que estava de fato abandonada. No primeiro nível, havia um grande salão de pedra com uma escada no fundo, que levava ao segundo nível da torre. Alguns utensílios estavam espalhados no local, que parecia ter funcionado há tempos como um forno de metais. Tudo muito velho e abandonado, com teias de aranha e vegetação tomando conta do interior.
Krul decide subir a escada. No segundo nível, havia um salão menor, com outra escada de pedra que devia levar para a torre alta, e duas passagens para o que pareciam ser aposentos. Neste salão, algumas armas estavam penduradas como troféus nas paredes, ao lado do que pareciam ser as cabeças empalhadas dos guerreiros que as usaram. Eram espadas, arcos, machados, de muitas épocas e origens diferentes.
O Gargo-Gigangrix segue para o aposento à esquerda, que parecia um quarto de descanso, empoeirado, com uma uma cama, uma mesa, e restos de roupas velhas. No outro aposento, Krul encontra um local de experiências e estudos. Havia alguns livros esfarrapados numa estante de madeira podre. Outras prateleiras sustentavam frascos de vidro e barro com poções variadas, que estavam ali há muitos anos, talvez décadas. Também havia uma mesa grande de madeira no meio, com utensílios para a manipulação de fogo e líquidos. Nos potes, restos de ervas e pedaços de bichos, como escamas e fragmentos de ossos e pelos. Enquanto isso, Mit Maikom tinha saído do bote e seguia para a clareira no interior da ilha.
Krul pega um dos panos no outro aposento e faz um fardo grande para carregar o máximo de frascos que pudesse. Mas quando o oficial sai da fortaleza, encontra um lagarto imenso do lado de fora. Um animal gigante, do tamanho de um gargo. Com certeza, aquela era a fera que estava rosnando no centro da ilha. Com cuidado, ele larga o fardo no chão e saca sua espada. O bicho ataca. A luta segue feroz até que Krul é derrubado pela fera.
Do lado de fora, Mit já tinha chegado ao centro do bosque, onde havia um esqueleto cadavérico, vestido com uma armadura e sentado num trono, segurando um tridente de Hoguz. Aquela era a arma sagrada de um arauto. O gaulês se aproxima e pega o tridente, sentindo imediatamente uma grande energia fluindo através de seu corpo. Naquele mesmo momento, a fera tinha parado de atacar Krul Petersen e correu para o interior do bosque, onde reverenciou o novo senhor da ilha: Mit Maikon.
Krul Petersen se levanta e leva os frascos com as poções para Melvis Merlin, que reconhece entre elas um unguento de cura. Ele e Anni tomam um pouco do poderoso elixir e logo começama se sentir melhor. Mit veste o resto da armadura: uma tiara, luvas, bota e uma malha de metal para o corpo, e logo sente a conexão mental com uma outra criatura. Das escarpas no alto da ilha, todos ouvem o grito de um Raven Pardo, que alça voo e se apresenta na clareira.
Recuperado, Melvis Merlin segue para o aposento dos livros, onde consegue ler em caracteres rúnicos antigos boa parte das histórias. Aquele era o templo de Agnus Kanser, o último dos Arautos de Hoguz. Só podia haver dois deles ao mesmo tempo, e quando se encontrassem, teriam de lutar até a morte.
Os Arautos de Hoguz só podiam evoluir destruindo o orgulho, e por isso eram caçadores implacáveis dos maiores guerreiros de Asgaehart. O próprio Agnus tinha feito fama dessa forma, tornando-se um homem solitário, silencioso e triste. Não teve mulher ou filhos. E viveu quase duzentos anos, morrendo em 499 Cl. Todos eles sabiam que não havia orgulho maior do que ser um deles. Daí o paradoxo:
“Há dois, mas só pode haver um” – Dizia o título de um dos livros.
Outros livros manuscritos contavam episódios da vida de Agnus, alguns registravam fórmulas mágicas, lendas do século anterior, criaturas místicas. Merlin começou a recolher tudo o que podia, pois aquilo era um verdadeiro tesouro.
Quando Mit resolveu voltar à capela do pequeno ilhéu com a estátua, seguindo um impulso que lhe atraía para o local, o cristal verde começou a brilhar novamente, ainda mais intensamente, mas dessa vez sem emitir qualquer zumbido. Apenas luzes. Ali, o gaulês conseguiu entrar em contato com as almas dos arautos anteriores, que estavam enterrados no mausoléu. Uma das gavetas tinha o nome do próprio Agnus, e ele sabia que deveria depositar a ossada de seu antecessor ali.
As pupilas de Mit se dilataram e ele entrou numa espécie de transe, onde viu cenas de combates imemoriais, compreendendo o fardo de se tornar um Hoguz, que sempre eram convocados para enfrentar as piores ameaças à existência humana. Gritando para os companheiros com uma voz estranha, muito mais grave, ele ordenou:
– Deixem tudo na ilha. Se saírem com humildade, não terei de matar todos vocês.
No mesmo momento, Merlin larga tudo que estava carregando, e entra no bote. Espantado com aquilo, Krul também segue o necromante. Quando Mit recobra a consciência em frente à estátua, cai de joelhos, sentindo como se o mundo pesasse em suas costas. Naquele momento, ele sabia que não poderia deixar mais ninguém entrar no templo. Se não fizesse o que tinha de fazer por conta própria, o espírito de Hoguz lhe tomaria novamente a consciência. E agora ele também sabia que, sempre que saísse da ilha, teria de trazer a cabeça e a arma de um guerreiro orgulhoso. Se não fizesse por bem, faria por mal.
Sem outras opções, Mit se despede de Krul, Merlin e Anni, e manda que o Raven Pardo os leve de volta em segurança para a Terra Vélgica. Agora ele tinha muito o que estudar por ali, e não passava por sua cabeça ter de sair à caça logo em seu primeiro dia como arauto. Mas, para além de toda aquela responsabilidade, ele também sabia que suas orações não tinham sido à toa. Certamente, Hoguz tinha reservado algo para ele.
Quando o Raven decolou rumo ao sudeste, levando amigos que ele não sabia se e quando veria de novo, Mit Maikon ficou observando o voo de longe, com a certeza de que sua vida tinha mudado para sempre.