68. A Lenda dos Dragões

Calto, Dragão do Leste, atacando uma localidade nas Terras Altas.

[Antes: 67. As Armas do Tiwaz]

530 cl.

Para surpresa de muitos, alguns jovens cavaleiros recém consagrados tinham conseguido trazer para Van Hal aquilo que todos pensavam ser uma lenda: o Tiwaz. Seis armas construídas com uma tecnologia desconhecida, energizadas pelos mitológicos Cristais de Xart, manipuláveis apenas por alguns dos magos mais poderosos do reino, como Imperatrix. Com as armas, também foram encontrados seis pares de braceletes com estranhos poderes mentais, e seis Ravens Dourados, magníficas criaturas aladas.

O “Tiwaz” das lendas, na verdade, era  uma equipe. As duas “Pontes”, martelos de guerra que tinham o poder de retornar às mãos dos guerreiros que os controlassem, ainda estavam perdidas, mas o jovens recuperaram um pique (o “Frente” do Tiwaz), lança gigantesca capaz de atravessar a couraça de um dragão, três arcos automáticos manipulados pelos “Artilheiros”, e dois Cetros que emitiam pulsos poderosos de “Contenção”.

Quando retornaram a Van Hal com as armas, relatando a história da missão bem-sucedida, o Rei Hagen enviou seus sacerdotes para o Templo do Tiwaz, para estudar as inscrições. Lá, os místicos descobriram toda a história da grande guerra ocorrida há quase mil anos. De fato, não foram apenas os Dragões Dourados que puseram os quatro Dragões de Fogo para hibernar por séculos. Alguns humanos tiveram participação importante, usando o Tiwaz, armas mágicas fabricadas pelas Ninfas de Pertisona, que conseguiam manipular a força dos Cristais de Xart.

Na época, o primeiro Cardeal a cair dominado foi o mais astuto dos Dragões de Fogo. Para não correr riscos, os dourados emboscaram Gorgon de primeira, todos juntos, colocando o dragão pra hibernar sem que ele tivesse tempo de reação. Depois, com a ajuda do Tiwaz, caçaram Malboro e Calto, obtendo dos humanos o juramento de que seus parentes vermelhos não seriam mortos. Já a epopeia contra Inferon, o maior e mais violento Dragão de Fogo, o último a cair no sono de séculos, demorou décadas. Após a saga, os integrantes do Tiwaz tinham sido praticamente dizimados, e por isso acabaram sumindo das narrativas. Os sacerdotes então lacraram o Templo e decretaram segredo sobre tudo o que fosse relacionado ao Tiwaz.

Entre os jovens heróis que tinham descoberto o paradeiro das armas, estavam alguns herdeiros dos lendários heróis das guerras contra os bárbaros, na década anterior: o filho de Erik Van Vossen, Viktor, que teria sido o grande responsável pelo sucesso do grupo de jovens na missão; Kathra, filho de Iuri Petersen; e Angelus Gigan, que todos acreditavam ser o filho de Vandu com Bretanique, amazona vilanda, ambos já falecidos.

Os outros integrantes do grupo eram Gunter Kron, um jovem da nobreza agunar que tinha decidido se tornar um mago elemental; Felice Luna, uma vilanda de Darklands, melhor amiga da duquesa Hanna; e Luke Logan, vulkânico da Terra das Sombras e Cavaleiro da Bruma. Os jovens também tinham resgatado um adolescente ileano, nativo de um povoado arrasado nas Praias de Echo, que resolveu seguir os passos de Viktor Van Vossen, seu protetor. Kathra ainda tentou recrutá-lo para servir em algum de seus negócios escusos no reino, mas o jovem preferiu seguir o mago gaulês:

– Já avisaram o moleque que o Fuscão gosta de uns garotinhos mais novos? – Ironizou o filho de Iuri.

– Niuton disse que ia dar uma vida de rei pra ele… Só esqueceu de avisar que antes ele ia ter de se virar sozinho pra escapar de Inferon. – Lembrou Viktor.

– Sério, Fuscão! Me deixa criar essa porra desse moleque! – Pediu Kathra.

– Não! Espana daqui, otário! – Rebate Viktor.

– Seria maneiro se esse miserável virasse um dos poderosos do reino daqui a uns anos! – Insiste o jovem vulkânico, na intenção de criar o moleque com a mesma pedagogia com que tinha sido educado por Vandu.

– Vai ficar por conta dele. Depois eu pergunto se ele gostaria de se tornar um grande guerreiro, um mago ou um filho da puta como Niuton. – Afirma Fuscão.

Mas o nativo já tinha tomado sua decisão, e preferia manter distância de Kathra. Até porque tinha visto com seus próprios olhos um mago iniciante vencer o desafio, enquanto os guerreiros mais fortes ficaram pelo caminho, completamente quebrados.

O filho de Iuri, por sua vez, depois de escapar da morte e se curar de mais uma coleção de ossos quebrados, estava preocupado com a descendência. Assim como Angelus e o falecido Niuton, antes de se relacionar com Luna, perambulava pelas ruas procurando rabos de saia. Com a patente de Maverik recém conquistada, a tafera era mais fácil. Sua intenção agora era recriar o famoso harém que seu pai tinha montado antes dele nascer, após uma experiência folclórica no Culto de Australi. E também como o pai, não queria saber da própria família, um antigo clã de guerreiros da cidadela de Aussflag:

– É ruim que eu vou dar esse mole para os Petersen! A linhagem Katrha não vai morrer comigo! – Repetia aos quatro ventos, sem se dar conta de que, na verdade, era completamente ignorado por um dos clãs mais tradicionais da Terras das Sombras.

Infelizmente, a missão também tinha trazido dois jovens cadáveres: Niuton McFerris, o idealizador e organizador da expedição, que tinha encontrado o mapa do Tiwaz, e Jon Tudur II, o filho do arauto de Hevelgar. Arrasado, o pai do jovem cavaleiro voou para Van Hal para enterrar o filho. Felice Luna, que descobriu estar grávida de Niuton, tinha decidido abandonar as artes de guerra, entregando o Arco do Tiwaz para Jules Flanagan, filho do Gargo Gigantrix Jon Flanagan, da Hokhe, jovem herói que trouxe para Van Hal os planos de Vitiferralis.

Na mesma época, Jules foi um dos únicos sobreviventes da primeira e fracassada expedição enviada pela Clave para tentar caçar Calto. Apenas ele e uma feiticeira, Messali Mina, tinham retornado com vida de uma emboscada que se transmutou em chacina.

A morte de Niuton tinha despertado a tristeza e a raiva de seu pai, o Duque de Canavera. Revoltado com o destino, o nobre pediu que os representantes de Terras Altas na Clave, como seu irmão Martin McFerris, votassem pela entrega das armas do Tiwaz para guerreiros mais experientes, de forma a evitar que outro pai chorasse as lágrimas dele e de Tudur. Afinal, o inimigo era Calto. Um Dragão de Fogo! A fera temível que tinha exterminado quase que totalmente, sem deixar chances, um grupo de 30 guerreiros dos mais poderosos que se propuseram a caçá-lo. Mas agora havia o Tiwaz. Não era uma lenda. Se algum dia os humanos realmente ajudaram os Dragões Dourados a derrotar os Dragões de Fogo, os velgas tinham pelo menos alguma chance.

Nos meses que passaram após a conquista do Tiwaz, os jovens se recuperaram dos ferimentos e treinaram com seus Ravens Dourados, que ao contrário dos demais de sua espécie podiam ser cuidados em estábulos apropriados. Enquanto isso, Kreuber Dikson tinha completado a primeira parte de seu treinamento como Cavaleiro Escarlate, sendo enviado pelo Grão-Mestre da Ordem a Van Hal, para continuar a tarefa do falecido Jon Hagen.

Calto continuava a apavorar toda a região, e já tinha acordos de sacrifício com os reinos próximos, como Saravessa, Viktoria e a cidadela de Dankel. Mas os velgas da Tetrarquia resistiam, e por isso sofriam investidas constantes do dragão, que arrasava sem pena os povoados desprotegidos, fora das muralhas das cidadelas, e até mesmo os reinos mais poderosos. Terras Altas e Darklands já tinham sofrido ataques devastadores, e todos agora esperavam que Van Hal e Aquitan fosses as próximas vítimas.

Os jovens heróis, no entanto, estavam preocupados com a decisão dos superiores. O enorme poder dos Cristais de Xart tinha sido confirmado, e a notícia circulava pelas cortes velgas: uma Clave seria convocada para decidir o grupo que levaria as armas do Tiwaz. No pátio da ACAFAM, onde ainda costumavam se encontrar, Kathra discutia com Kreuber Dikson, que certamente seria um dos enviados para lutar contra o dragão:

– Eles não estão errados. A missão é pica. – Diz o Cavaleiro Escarlate.

– Eles querem as armas? Então venham pegar. Vou gastar munição feliz. – Responde Kathra, que agora só andava com o poderoso arco em punho: – Morreu gente e vários quase morreram também. Agora vem esse nobre cheira-rola querer dizer o que fazer com elas? No cu dele!

– Hahahaha! Vai ser algo assim: “Valeu, molecada por achar o Tiwaz. Agora vão ali brincar de capa e espada”. – Imagina Kreuber, tirando sarro dos jovens.

– Vou mandar o pai do Niutin tomar no centro do olho do cu dele! – Rebate o vulkânico, agressivo, já pensando em quantas donzelas adicionaria ao currículo se matasse um dragão.

– Já me falaram que o único da missão de vocês que será chamado para falar com os oficiais será aquele cara da Bruma. – Diz o Escarlate.

– Pois eu já aviso: se vierem tomar minha arma, vou dar logo 50 rajadas pro alto. Aí podem usar a arma de cabide se quiserem. – Devolve Kathra.

Também havia um aspecto sentimental. A verdade é que todos eles já estavam se apegando aos Ravens Dourados. Alguns já tinham até sido batizados.

– Nego tá pensando que Kathra é bagunça?! Com a minha arma vou eu ou não vai ninguém! – Afirma o filho de Iuri, concluindo: – E se Luke peidar eu paro! Acaba o respeito. A gente se fode e vai dar as armas pros outros? Praqueles que diziam que era loucura e riam? Vai entregar que nem um bucha? Tá maluco! Nem fodendo!

– Melhor negociar, cara… Essa armas têm prazo de validade. Você pode conseguir muita coisa aceitando a troca… – Sugere Kreuber.

– Então eu quero um reino. Isso mesmo, quero um reino, com uma arma foda e eterna! Quero ser rei a partir de hoje? Negócio fechado. Não?! Então vão pra puta que os pariu!

Os demais espectadores do debate se escangalhavam de rir com a revolta do jovem vulkânico, que continuava bradando aos quatro ventos:

– Bom… Pelo menos um moleque vai no bonde. Isso é inegociável! Mas vou esperar a posição de Luke. Ele é homem feito, não vai virar garoto de recado. Se fudeu junto com a gente pra buscar o Tiwaz. Duvido que vai entregar que nem um garotinho…

Naquele mesmo momento, por coincidência, Luke Logan estava chegando ao pátio da Academia, e já ouvia todo aquele discurso.

– Estou assustado com a racionalidade do Cavaleiro Escarlate e a infantilidade do Kathra… Hahaha! “Vou dar tirinho pro alto… Se vier tirar minha arma vou me matar…” – Diz o Cavaleiro da Bruma, fazendo uma paródia.

– A questão é: vai peidar pra nobre ou não? Quero ver a postura padrão! – Rebate o jovem vulkânico, enchendo a boca para falar: – Foi a molecada que arrumou a chance de destruir os bichos. Não foi esse monte de almofadinha não!

– Minha pergunta pra equipe que buscou o Tiwaz é simples: alguém se acha realmente capaz de ir nessa caçada hoje? – Questiona Luke, sério.

– Pois eu me garanto nessa peleja contra os dragões! – Afirma Kathra, se enfurecendo com a pergunta: Voltei todo fudido, mas voltei vivo! Quer negociar? Abre um comércio, caralho! Essa porra é a busca pela glória em vida! Ou alguém acha que neste século vai aparecer outra oportunidade de caçar um Dragão de Fogo com chances reais de êxito?!

– Sério, cara. Tirando o Fuscão, nenhum de nós superou o desafio. – Diz Luke.

– Porra, Luke! Eu tenho o direito de ir! Quem quiser peidar, que então peide e seja feliz! – Insiste Kathra.

– Fui nessa missão como tutor de vocês, e vi dois bons garotos morrerem tentando conseguir pegar essas armas. E tu voltou carregado. Estou falando com a razão e não com a emoção. Ninguém aqui está preparado pra encarar um dragão. Fato. – Replica Luke.

– Fale por você! Não abro mão de ir nessa missão! – Grita Kathra.

Naquele momento, uma grande roda já tinha se formado para ver o debate, com torcida para os dois lados. Aquela discussão não tinha mais hora pra acabar.

[Continua: 69. Discussão na Academia]

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